Uma
curiosidade risível sobre mim: como não tenho antena de TV e nunca me
coloquei pra resolver isso, raramente vejo a programação da TV aberta e
costumo usar streamings, pagos ou gratuitos. A Pluto TV é campeã na
minha casa, sendo o canal de Bob Esponja o número 1. Já sabemos a
maioria dos episódios de cor e, quando aparece um episódio “inédito”
(para Felipe e eu) é um grandíssimo evento no apartamento 003.
Queria usar uma razão muito elaborada e baseada na psicologia para justificar a dominação de Bob Esponja e da Fenda do Biquíni na minha casa, mas o motivo é simples: eu gosto. No auge dos meus 30 anos, o desenho que está no ar desde 1999 é uma das minhas diversões enquanto faço comida ou simplesmente sento para dedicar meu tempo a indiscutível alegria de Bob Esponja e Patrick, a suvineza de Seu Sirigueijo e o mal-humor de Lula Molusco.
Recentemente, um dos episódios me chamou a atenção. Com medo de tomar uma multa (e, consequentemente, perder dinheiro), Seu Sirigueijo obriga Bob Esponja a tirar férias. Animado, o nosso chefe de cozinha favorito vai pra casa aos risos por estar de férias, no entanto, aparece no trabalho normalmente no dia seguinte. Ao ser questionado por estar lá, já que estava de férias, Bob Esponja questiona “o que é férias?” e fica desolado ao se dar conta que precisa passar um mês longe da chapa, da espátula e, obviamente, do trabalho.
O episódio se desenrola com o nosso Calça Quadrada tendo várias crises sem saber o que fazer com o tempo livre, chegando a brincar de trabalhar com uma versão miniatura do Siri Cascudo. Patrick, o melhor amigo do protagonista, é contratado para substituí-lo e a esponja amarela entra em crise acreditando que será trocado pela estrela-do-mar e chega a acusar o chefe de ter feito uma conspiração contra ele usando as férias como pretexto.
Bob Esponja fez do trabalho o seu principal enredo, a razão da sua existência, o motivo para fazê-lo acordar de manhã. Quando se viu sem, mesmo que de forma temporária, ele colapsou. Quando viu Patrick segurando a espátula que era instrumento de trabalho dele, Bob Esponja surtou. Era SUA espátula, como o outro ousava segurá-la? Todas as vezes que vi o episódio, já que obviamente é bastante reprisado, eu pude enxergar algumas pessoas e, é claro, a mim mesma no medo constante de Bob Esponja em ser substituído.
Quando me perguntam o que sou, digo “jornalista” ou “escritora” e até mesmo “assessora de”. Mas essa são minhas formação, ocupação e profissão, respectivamente. Se me perguntarem o que sou, em ambiente com pessoas da minha família, direi “filha de Alice” ou “neta de Dolores”, mas essa é a minha filiação. Ao lado de Felipe, direi “noiva”, mas esse é o nosso estado civil.
Quem sou eu? Quem é Thiarlley? Se tiram todas as informações ditas acima, o que me resta? Quem é Thiarlley Valadares para além do trabalho, da família, do relacionamento, dos livros, do sobrenome?
Quando a ficha caiu, primeiro eu me perguntei como um desenho de classificação livre poderia causar tantos gatilhos identitários ou se eu que tinha viajado demais quando deveria só curtir a programação. Mas depois de rir porque, é claro, era viagem demais, me dei conta que essa é a realidade de quase todos nós. Quais as primeiras informações das bios no Instagram, senão a profissão, a formação, os títulos, o nicho?
Conversando com algumas pessoas próximas sobre casos semelhantes que já vimos acontecer, de pessoas colapsando porque não mais ocupavam cargos de prestígio ou porque almejavam lugares específicos e, quando não obtiveram, assumiram que era culpa do outro que o ocupou, eu sempre disse “sei quem sou para além do meu cargo” e, de fato, sei.
Mas se me tirarem o “escritora” e os meus livros, por exemplo, eu já não sei. As minhas obras são frutos, saíram de mim quase como um parto. Mas será que elas deveriam ser mais do que isso? Será que realmente as minhas obras, atreladas ao título de escritora, me definem ou são uma parte do todo?
O ponto é que eu não sei responder. E não é fácil buscar definições sobre si que não se resumam a adjetivos. Quando liguei a TV e ri com Bob Esponja em completo surto pelas férias, chegando a usar uma fantasia de Patrick para ir ao trabalho sem ser reconhecido, não imaginei que seria colocada à repensar minhas próprias prioridades.
E aqui estou eu, escrevendo uma crônica enorme baseada num episódio de um desenho infantil e que, quando mostrei o título a Diogo, um amigo, ele riu. Rute, por sua vez, disse “por essa relação eu não esperava”.
Sem a espátula, Bob Esponja não sabe quem é. Sem meus livros e a minha não-tão-famosa carreira de escritora, eu não sei definir quem eu sou. E baseado nas já mencionadas bios do Instagram, repletas de profissões, títulos, vinculações empresariais, cargos e emojis de coração e anel para indicar relacionamento, quase todo mundo tá meio perdido na máxima identitária.
Também bateu aí? Consegue responder a si mesmo quem é para além de alguma coisa?
2 Comentários
Como pode essa relação existir, ainda me pergunto. Amiga, sabe que pensando sobre isso acho que a coisa que me define é ser leitora. Acho que eu ficaria tal qual Bob, perdidinha, se me tirassem essa possibilidade. Quanto a ser escritora, professora, etc, já não sei. Talvez a gente precise de férias.
ResponderExcluirComo pode um desenho infantil causar tanta reflexão. Acho que Thi pode começar se apresentar como escritora, tal qual eu como crocheteira. As obras que faço com as minhas mãos, idealizadas pela minha cabeça não tem como não ser feita de eu
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