Protagonista de ‘Não é o que Parece’ é referência para meninas e mulheres negras e conquistou o 3º lugar na categoria “Melhor Protagonista” no Prêmio Litera 2023
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Se você cresceu nos anos 2000 e hoje trabalha em áreas como comunicação, publicidade, jornalismo, marketing ou relações públicas, com certeza teve influência das diversas personagens femininas de comédias românticas, a exemplo de “De repente 30” e “A Proposta”. As diversas referências do mercado de trabalho comandado por mulheres fortes, eram constantes nas narrativas da época que moldaram uma geração de mulheres dispostas a serem donas de si, como em “O Diabo Veste Prada” e tantos outros filmes.
No entanto, ao olhar para trás, quais as características dessas mulheres e a quem elas representaram (e representam)? Jennifer Garner, Sandra Bullock e Anne Hathaway, protagonistas dos filmes citados, respectivamente, são mulheres lindas que preencheram as nossas tardes de cinema, oferecidas pela Sessão da Tarde, mas todas elas são… brancas. E, apesar de terem nos mostrado a força que podemos ter e os espaços que podemos conquistar, as comédias românticas dos anos 2000 também nos mostraram, indiretamente, que mulheres que ocupam espaços de poder no mercado de trabalho têm a cor de pele definida.
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Trazendo um breve relato pessoal, o jornalismo e a comunicação estiveram presentes em momentos que eu nem imaginava que seriam parte da minha vida. Ao brincar com barbies, os móveis de madeira comprados na feira livre de Tobias Barreto e que imitavam a casa dos sonhos caríssima, eram arrumados como um escritório. Lápis, papel e cola eram usados para criar mini posts it's, quadros, revistas e pastas importantes. Minhas bonecas eram, o que eu carinhosamente chamava de modista (e achava estar sendo o mais criativa possível): jornalistas de moda.
Foi com base nas personagens citadas e nas minhas brincadeiras de criança que Ágatha Simões nasceu, num esboço da mulher independente que eu, aos 21 anos, sonhava em ser. E por sonhar ser alguém como ela, não tinha como Ágatha Simões ter características diferentes das minhas. Ela precisava ser uma mulher negra.
Nós temos vivências diferentes, é claro, porque a magia da escrita é criar espaços, mundos, enredos e narrativas. Ágatha teve família estruturada e o privilégio financeiro de buscar seus sonhos, pois tinha suporte de seus pais, advogados, que garantiram um espaço seguro para que ela pudesse crescer profissionalmente como quisesse. Essa parte da vida dela veio, também, para quebrar a ideia de que personagens negras precisam, sempre, viver carregadas de sofrimento, pobreza, fome e negligência.
A história de Ágatha era outra e muito comum a nós mulheres negras que, de uma forma ou de outra, tivemos privilégios que nos deram acesso à educação e qualificação no mesmo nível que outras pessoas brancas: a invalidação enquanto profissional qualificada. E essa invalidação aparece de diversas formas, carregadas de machismo e racismo e que combatê-las se torna mais uma tarefa diária para além do trabalho.
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Ao trazer o meu relato pessoal e a motivação para a criação de uma personagem como Ágatha, não estou tentando invalidar as referências e as conquistas que tivemos a partir dos filmes dos anos 2000 que tanto amamos. Inclusive, Margareth Tate, interpretada por Sandra Bullock em “A Proposta”, foi a principal referência para o desenvolvimento de Ágatha; menção honrosa ao fato de que sei o filme de cor. No entanto, Ágatha Simões representa o primeiro passo na criação de narrativas que envolvam e representem mulheres em sua pluralidade.
Ágatha Simões é uma mulher forte, batalhadora, incisiva e mais que competente para exercer o cargo que ocupa. E a existência dela, por mais fictícia que seja, é um lembrete a todas as meninas e mulheres negras de que não há espaços pré-definidos para nós e não há porque acreditarmos naquilo que dizem sobre nós. Afinal, como Chimamanda bem disse em um de seus discursos, um homem que lidera é lido como “bom chefe”, uma mulher que lidera é lida como “megera mandona”.
Os outros dirão e farão diversas coisas negativas sobre nós. Se essa é a verdade deles, que seja. Mas que não seja essa, também, a nossa verdade sobre nós mesmas.
Na semana em que ‘Não é o que Parece’ completa um ano de lançamento, celebrar Ágatha Simões é celebrar as referências que nós, mulheres negras com mais de 25 anos, não tivemos ao crescer e que, hoje, buscamos ser para aquelas que vieram depois de nós. Pois, citando a grandiosa Angela Davis, “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
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