PERFIL JORNALÍSTICO | Mingau de Alho

Foto: c4 Notícias

Helena Barreto dos Santos é a mais velha de dez filhos. Nascida em 1º de abril de 1932, Helena não poderia ter vindo a este mundo num ano pior: período final de uma das maiores secas do nordeste, 1932 é chamado até hoje como “o ano da fome”. A crise que atingiu os Estados Unidos em 1929 chega ao Brasil de forma esmagadora, dizimando muitos de uma das mais cruéis formas de se morrer. Sua chegada e permanência no mundo foi marcada por lutas que hoje carrega as marcas nos traços envelhecidos de seu rosto. 

A infância e juventude foram marcadas por dificuldades e responsabilidades no pequeno povoado de Sambaíba, vinte e quatro quilômetros distante de seu município de origem, Itapicuru, interior da Bahia. Em contrapartida, a cidade de Tobias Barreto, no estado de Sergipe, fica apenas a sete quilômetros, sendo, até hoje, ponto de referência para praticamente tudo dos moradores de Sambaíba. Ainda muito cedo, a menina Helena se abstêm das bonecas e brinquedos, dedicando seu tempo infantil ao cuidado dos irmãos e afazeres da casa. 

Na incessante busca de uma vida melhor, deixa sua pequena Sambaíba ainda aos 18 anos, mudando-se para Boquim, município sergipano. Lá, trabalhou como cozinheira numa pensão, lugar que também residia. Durante quatro anos de sua vida, Helena viveu em território desconhecido, a fim de construir um futuro com as próprias mãos. 

Retornando ao seu povoado de origem, surge na jovem mulher o anseio de continuar dona de sua própria história. Certa vez, uma vizinha lhes ofereceu cocos para que fizesse alimento. Perspicaz, Helena os utilizou para a criação de cocadas de coco, com raspas da fruta logo acima. O tabletes redondos foram vendidos pelo povoado, recebendo o nome de “mudinhas”. Nascia, ali, o empreendimento que perduraria por gerações. 

Jovem e ingênua, envolveu-se com um homem de caráter controverso. Dele, tivera três filhas: Maria José, Josefa, que adquiriu o apelido de Zete e Josefa, que mais tarde ganharia a alcunha de Sandra. Com a caçula ainda bebê, Helena se vê sozinha para criá-las, tendo como sustento a venda das cocadas que confeccionava. 

Aos três anos, Josefa, a filha do meio, adquire uma conjuntivite viral que a deixa cega. Leiga no assunto e sem auxílio, Helena educa a menina para que conviva em sua condição, ensinando-a a apurar os ouvidos e a contar seus passos. 

Após quatro anos sozinha, Helena se envolve com Jonas Rogério da Anunciação, homem casado e pai de três filhos. O envolvimento com um homem comprometido a deixou falada na cidade, mas tais falatórios não a abateram. Jonas era mulherengo, não respeitava a fidelidade de sua esposa, e ela não era a única relação extraconjugal que ele mantinha. 

Acostumada a se manter, Helena não esperou que o sustento viesse de Jonas. Assim, permanecia a vender seus doces e cocadas, aderindo agora a venda de frutas na feira livre de Tobias Barreto, cidade próxima. Com o pote de frutas apoiado à cabeça, Maria José nos braços e o primeiro filho de Jonas na barriga, Helena caminhava sete quilômetros até a cidade, a fim de vender suas frutas e garantir seu sustento. 

Desta relação, vieram: José, Maria José, que depois ganharia o apelido de Zuleide, João Nilson e Rogelene. A filha mais velha de Jonas, Valdete, era contra o relacionamento, tendo sua razão. Após a morte da sua primeira esposa, Jonas viveu com a segunda família até pouco antes de sua morte, sendo cuidado pelos filhos em seus últimos dias de vida, tratando uma apendicite. 

Com a morte de Jonas, apesar de ter vivido com ele por cerca de 20 anos, Helena e seus filhos nada herdaram, afinal, nunca fora casada oficialmente. O pequeno pedaço de terra que os filhos cuidaram por onze anos, não lhes pertenciam por direito. Assim, seus filhos seguem o mesmo rumo, vendendo frutas, doces e trabalhos artesanais nas feiras de cidades próximas. 

Aos 86 anos, Helena é uma pessoa alegre, apesar da vida sofrida. A visão já está falha por conta da idade, mas é só chegar juntinho que ela reconhece e convida para um papo sobre o passado. Helena recorda de tudo o que passou em Sambaíba e arredores. “A enchente de Tobias que todo mundo fala, eu lembro” diz ela, olhando a estrada que dá acesso a cidade citada. “O povo passava na rua de canoa, menina, a praça da Igreja Matriz parecia um pedaço de terra no meio da água” estende a mão, indicando o volume de água. 

Mora na mesma casa há mais de 30 anos e o costume mais conhecido é a mania de mudar os cômodos da casa. Seus filhos já perderam a conta de quantas vezes a casa teve o modelo alterado. E ela já tem planos de mudar novamente. Aos domingos, filhos(as), netos(as) e bisnetos(as) que moram nos arredores costumam visitá-la, almoçando juntos. Helena aproveita para contar suas histórias. “Gosto quando ‘tá quase todo mundo ou todo mundo aqui”, afirma. “Já estou velha, não sei quando vou-me embora. Quero aproveitar”. 

Uma de suas comidas favoritas é mingau de alho. Nos povoados e fazendas do nordeste, o mingau de alho é indicado para mulheres em período de pós-parto e idosos doentes. Helena, por sua vez, adquiriu gosto pelo mingau, alimentando-se dele até hoje. De todos(as) da família, Marcelle Paz de 14 anos, a primeira dos(as) bisnetos(as), é a única que compartilha do gosto pelo mingau de alho. Logo, é comum ver as duas sentadas à mesa, dividindo panelas de mingau e histórias de suas épocas. Marcelle é chamada pela bisavó de “espevitada”, diante do gênio forte. “É bruta e respondona, essa menina!” diz Helena aos risos. 

Ao ser perguntada sobre a morte, Helena dá de ombros e afirma não ter medo de morrer. “Já vivi mais que achei que iria viver, minha filha”, explica. Religiosa, diz que sua maior felicidade é ver os filhos tementes a Deus e completa: “Se Ele quiser me levar, ‘tá bom”, diz ao passar as mãos pela barra da saia e brincar com o tecido. O olhar recai para o que faz com as mãos, “Os meninos dizem que eu vou passar dos cem, mas” ela se interrompe e ri, dando de ombros novamente. “Se for pra passar, tomara que não dê trabalho, né”. E sorri, voltando a falar da história do povoado e da família, perguntando aos netos mais novos se sabem que foi ela mesma que fizera um dos partos de Rogelene, em sua terceira gravidez. 

A história de Helena aqui contada não se difere da grande maioria de idosos, e porque não jovens, nordestinos nascidos em povoados, fazendas, quilombos e distritos. O povo nordestino traz, marcada em sua história, nas linhas do rosto e nos calos das mãos, a dor de um povo por muito esquecido pelos seus governantes, interessados numa cultura sul-centralizada que perdura por anos, desde a criação deste país. Ao contrário da preguiça que é erroneamente associada, o povo nordestino carrega o desejo da vida melhor, longe da seca, da fome, do descaso, do preconceito, da desvalorização.

Perfil escrito em homenagem a minha avó, Helena, por sua história de vida.

4 Comentários

  1. É por esse tipo de texto que eu fico muito orgulhoso em dizer por aí que você é minha amiga. Que história incrível e que leitura maravilhosa você nos proporciona, um retrato imoortante da realidade de tantas avós e mães por aí. Parabéns, Thiarlley! ♥️

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    1. Meu amooooor! ♥️ Obrigada pelo comentário, fico feliz demais com a sua presença por aqui. Obrigada pelo apoio, por ter me mostrado o projeto que resultou nesse texto, obrigada por tudo. Te amo. ♥️

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  2. Que texto maravilhoso! Logo se vê que vem de uma jornalista profissional. A forma como você retratou a história da sua avó é simplesmente cativante. Faz ela parecer uma personagem de romance e, ao mesmo tempo, gente como a gente. A leitura flui e nos leva a imaginar tudo o que está sendo narrado, como num filme. Gostei muito mesmo! Queria ter lido antes.

    Eu moro longe e nunca estive no Nordeste. Os amigos que tenho por aí, todos virtuais, não falam muito sobre esse aspecto da vida por aí, talvez por morarem em grandes capitais onde, imagino, a vida deve ser mais fácil. O pouco que conheço dessa história se deve às leituras de autores regionalistas e a uma pesquisa que fiz recentemente sobre xilogravuras. Mas ainda é muito pouco. Então, é bom ter acesso a histórias como essa, reais. Dá a gente outra visão do povo nordestino. Obrigada por compartilhar!

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    1. Fiquei preocupada de, escrevendo como uma personagem "de fora" já que não mencionei no texto que era a minha vó, tivesse dado um ar meio impessoal ao texto, mas todo mundo que lê diz que ficou intimista. (Inclusive, uma das minhas primas leu para ela e foi lindo, af ♥️)

      Infelizmente, o restante do Brasil nos reduz a praias e a seca. De fato, a seca é uma das coisas que ainda nos assola (mesmo que não tanto quanto já foi), mas o descaso em cidades menores e povoados longes de cidades centrais é absurdo. Tenho histórias dessa mesma vó que me apertam o coração, se quiser, posso te contar depois. Fico aliviada por saber que contribuí para ampliar sua visão do nosso país. :)

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