CRÔNICA | A mulher no ponto de ônibus


Era meio de semana, uma amiga e eu tínhamos ido ao shopping por algum motivo que não me lembro. Paradas no ponto de ônibus, a tarde se despedia dando lugar a escuridão da noite, iluminada pelas fortes lâmpadas da extensa avenida.

Fazia cerca de quinze minutos que estávamos lá, rodeadas de pessoas que não conhecíamos, quando uma mulher em particular me chamou a atenção. Baixa, aparentava ter mais de quarenta anos, negra. Os cabelos encaracolados, crespos, estavam curtinhos, o que me levou a teoria de que tinha assumido as madeixas naturais recentemente. Ao vê-la, eu sorri. A mulher, notando o meu sorriso em sua direção, retribuiu com a mesma alegria, porém, com confusão em seus olhos. Talvez se perguntava de onde me conhecia ou se me conhecia.

O fato é que nunca tínhamos nos visto na vida. O sorriso que direcionei à ela era o mesmo que eu abria ao notar toda e qualquer cacheada, em qualquer lugar. Naquele momento específico, meu sorriso tinha muito mais que felicidade ao ver uma mulher, com o dobro da minha idade, usando seus cabelos naturais – e sem vergonha disso.

O meu sorriso demonstrava admiração. Satisfação.

A aceitação tinha rompido mais uma barreira: a da idade. Quando iniciei meu processo de transição, ouvi muitas mulheres mais velhas dizerem que isso “era coisa de jovem”. Que para elas, já àquela altura, não fazia o menor sentido tentar reverter processos químicos. Assim, quando virei o rosto por puro costume e notei aquela mulher caminhar em direção ao mesmo ponto de ônibus que eu estava, a presença dela indicava muito mais do que outra cacheada num mundo de preconceitos e racismo.

A presença dela indicava mais uma geração engajada no amor próprio.
A presença dela indicava que nunca era tarde demais para se aceitar.

Saí do meu devaneio quando a mulher em questão veio até mim perguntar se determinado ônibus já havia passado, eu respondi que não. Logo em seguida, lhes falei que seu cabelo era muito bonito, ela sorriu largo o suficiente para se tornar em gargalhadas.

“O seu é mais”, ela respondeu. Acompanhei suas risadas e lhes disse que isso não era verdade, que ambas as cabeleiras eram lindas e únicas ao seu modo.

O ônibus que ela esperava chegou, a mulher saiu e eu a acompanhei. Ao chegar próximo as escadas, ela se virou e se despediu de mim. Com um aceno e um sorriso pequeno, retribui.

E, de maneira tão simples, aquela mulher me fez feliz. Fez-me realizada pelo que temos lutado, pelo que tanto pregamos nas redes sociais, nas ruas, nas rodas de conversas, na nossa existência.


Que mulheres negras devem ser livres para se amarem como são. 

4 Comentários

  1. Que texto lindo e inspirador *-* acho que todo o papo de transição capilar não tem nada a ver com idade, e sim com a pessoa querer. Se aceitar com os naturais, ou mesmo assim preferir a química... usar do jeito que se sentir melhor. Dá gosto ver todo mundo assumindo o cabelo do jeito que acha melhor, e incentivar umas às outras é sempre importante :D

    Beijos!
    http://tipsnconfessions.blogspot.com

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    1. Oi, moça! Muito obrigada pelo comentário <3
      Eu concordo com tudo que você disse, foi exatamente o que pensei quando vi a moça chegar e me sinto assim sempre que vejo mulheres mais velhas com cachos.
      E, mesmo sendo total a favor das madeixas naturais, concordo super com você sobre o uso da química, não vejo problema, desde que a pessoa esteja feliz!
      Beijinhos

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